30 junho 2018

A minha experiência como voluntário trabalhando num projecto de reflorestação no maciço montanhoso do Pico do Areeiro

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— Introdução —
Uma vez que por estes dias tanta gente tem uma opinião, um afecto desde o berço, estudos que “provam cientificamente”, especializações em tudo e sabe-se lá mais o quê, sobre a “importância” do pastoreio para restabelecer o coberto vegetal nas zonas mais altas da ilha da Madeira, achei que não será excessivo também associar-me à discussão do tema, do ponto de vista de um voluntário que desde 2004 trabalha lá em cima em projectos de reflorestação e que já muito observou, ouviu, leu e, no fim de contas aprendeu alguma coisa. Eu.

Se tiverem interesse no tema e um pouco de paciência — reconheço que o texto é um pedaço longo à escala do que hoje em dia se publica nas redes sociais e, ainda por cima, ilustro com duas centenas de fotos — partilho aqui um pouco de uma experiência que se tem revelado extremamente enriquecedora do ponto de vista humano e, felizmente, também do ponto de vista botânico, de participação cívica num projecto de reflorestação de algumas áreas do maciço montanhoso do Pico do Areeiro.


— Não julgar sem conhecer —
No final de 2001, numa das minhas visitas regulares ao Pico do Areeiro apercebi-me da presença de uma nova placa em madeira na berma da estrada, de dimensões significativas, umas centenas de metros antes de chegar ao cume. Identificava uma associação, dita dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal, que até então desconhecia, e marcava o que parecia pretender ser uma área de plantação.

No entanto, o que eu ainda podia ver era apenas o que eu tinha conhecido ao chegar a esta ilha 3 anos antes: essencialmente rocha escalvada de tonalidade avermelhada e pouco ou nenhum sinal de vida. Nem sequer erva.

No par de anos que se seguiram regressei mais umas vezes àquele local único para descansar a minha vista numa paisagem de cortar a respiração (quando o branco das nuvens não tapa tudo) ou ia mostrar um local de visita obrigatória a amigos que vinham pela primeira vez à Madeira.

Nesse período, em que da posição sentada conduzindo o meu automóvel a vista não parecia mudar, foi crescendo a minha convicção que um dia em Outubro de 2001 uns quantos amigos da natureza acompanhados de uns políticos para botar discurso e fazer promessas de um futuro melhor para os habitantes da ilha, provavelmente abriram uns buracos e plantaram uns raminhos de verde, para que os jornais e a RTP Madeira passassem a notícia. E parecia que por aí tinham ficado. Boas intenções, nenhuns resultados à vista.

Provavelmente pensei o mesmo que muitos que apenas deixavam o conforto da viatura mais acima, ao chegar junto à Pousada para caminhar uns metros até ao miradouro. Ou tomar um cafézinho ou uma poncha.

Até que, numa tarde do Verão de 2005, me apeteceu fazer uma subida solitária a pé desde o Funchal até quase ao topo da ilha, esforço que foi recompensado no final com um dos mais belos pores-do-sol que pude apreciar nesta vida. Passado esse momento mágico resolvi ir ao encontro do meu automóvel que tinha deixado essa manhã junto ao Poço da Neve. Desta vez dei por mim a atalhar pelo meu pé pelo terreno que até então para mim tinha sido apenas um pedaço de aridez deixado ao abandono por quantos lá tinham ido colocar a placa 4 anos antes.

E fui surpreendido pelo que lá encontrei. O que eu não podia ver do interior do meu carro. Vi plantas a crescer (nessa altura ainda não lhes conhecia os nomes), vi erva a espalhar-se pelo terreno, vi que a mancha avermelhada do solo estava a diminuir. Fiquei assim mais curioso pelo trabalho que afinal ali se realizava. O terreno não era apenas um pedaço de abandono assinalado por uma placa e eu tinha cometido um erro de avaliação do trabalho alheio.


— Voluntariado —
Dois meses depois juntei-me ao grupo de voluntários da AAPEF, numa jornada de trabalho de limpeza do terreno que havia sido recentemente adquirido ao Dr. Rui Silva e que se viria a transformar no Campo de Educação Ambiental do Cabeço da Lenha. Entre urzes e uveiras-da-serra, nesse dia dediquei-me com entusiasmo a remover esteva, uma infestante exótica de flor bonitinha mas que se espalha facilmente pelo terreno e inibe o aparecimento de outras plantas. Também pude finalmente conhecer a missão deste grupo e um pouco da história ambiental da ilha que tinha enquadrado a sua criação.

Nas actividades seguintes dedicámo-nos à remoção de eucaliptos e pinheiros, giesta, carqueja (tojo) e mais esteva, espécies infestantes que dominavam a encosta adjacente em terreno do Parque Ecológico do Funchal. Fomos dispondo o material cortado ao longo das curvas de nível com o objectivo de desacelerar a descida das torrentes de água, facilitando a sua infiltração no solo, e contando com a sua gradual decomposição para devolver nutrientes a esse mesmo solo. Nos intervalos, já pontuados por urzes e uveira-da-serra, começámos a introduzir espécies autóctones, substituindo a monotonia das invasoras em benefício de uma recuperação da biodiversidade de origem regional.

Com o tempo fui-me inteirando do resto, mas a história é conhecida por quantos a têm acompanhado e está disponível para quem quiser saber mais sobre a problemática das zonas altas da ilha e o que a AAPEF tem feito para demonstrar que o regresso da vegetação autóctone àquele deserto de montanha é possível, por processos naturais e de baixo custo. Por isso não vos canso. Para quem quiser saber mais indico no final deste texto onde poderão consultar esses documentos.


— Cavar por cavar, não —
Por natureza sou curioso. Ou seja, quando me dão uma enxada para abrir um buraco, colocar uma planta e acomodá-la o melhor possível, criando uma caldeira à sua volta, colocando uma camada de estilha, observo e tento entender “porquê?”. Porque não simplesmente abrir um buraco e deixar lá a planta? Rendia mais e plantava-se mais no mesmo tempo. Ou não? Além disso faz transpirar e cansa o corpo, o que às vezes não é agradável.

Por isso fui ouvindo atentamente as explicações dos voluntários mais experientes (alguns deles descendentes dos obreiros que recuperaram a floresta do Poiso ao Ribeiro Frio a partir da década de 50 do século passado e por isso têm acompanhado todo o processo), fazendo perguntas sobre tudo e mais alguma coisa sobre o tema, e lendo muito sobre História e Biologia. Mas, mais importante ainda, passei a observar fim-de-semana após fim-de-semana a evolução das jovens plantas, o que parecia resultar melhor, o que parecia falhar.

Assim descobri:
  • que a caldeira serve para concentrar mais humidade à volta da planta, retendo a água mais tempo e facilitando a sua infiltração no solo;

  • que as pedras à volta servem tanto para sinalizar a planta como para ajudar a conter a água mais tempo na caldeira. Mas não devem ficar demasiado junto à planta para que no Verão não irradiem demasiado calor sobre ela;

  • que a camada de estilha protege a raiz da planta tanto do frio (no Inverno por vezes a humidade chega a congelar e ocorre precipitação de neve e granizo) como do calor extremos, mas também retém a humidade e torna mais lenta a evaporação e, à medida que se vai decompondo transforma-se em nutrientes para a planta;

  • que o buraco deve ter dimensões significativas para que se possa remover alguma da pedra enterrada (que pode ser aproveitada para demarcar a caldeira) e poder diminuir a compactação da terra de forma a facilitar a infiltração da humidade no solo;

  • e mais detalhes (muitos) que se vão aprendendo com o tempo e a observação atenta. Terei muito prazer em partilhar a quem se nos juntar numa sessão prática de plantação.

Também descobri que a pressa não condicionava aquele grupo. Tinham consciência que aquelas espécies, que já tinham sido aqui encontradas por Bartolomeu Perestrelo e João Gonçalves Zarco quando cá chegaram, levariam mais tempo a crescer do que as espécies de “aviário”, introduzidas aqui para servir os humanos que vieram habitar a ilha. E que, mais do que números, interessava restaurar a biodiversidade de forma sustentável, equilibrada, consistente.

600 anos de desequilíbrios introduzidos pelo homem não podem ser corrigidos de um dia para o outro. 600 anos de desmatamento, de incêndios, de pasto de animais, tinham reduzido os cumes da ilha, onde se “preparam” as toneladas de rocha fragmentada e lama que descem descontroladamente encosta abaixo quando a precipitação é excessiva, a um deserto de montanha.

Sem uma floresta adulta a rodear as pequenas plantas, conferindo protecção de ventos por vezes muito fortes, de demasiada exposição solar, de frios muito intensos, sem um “sistema de rega” natural conferido pela folhagem das outras plantas, as infantes têm mais dificuldade em resistir a essas ameaças e em crescer ao ritmo de outras semelhantes em ambientes mais acolhedores.

E é para isso que o trabalho humano é necessário. Para, pelo menos no estágio inicial de vida, cuidar das plantas para que possam defender-se melhor de um meio ambiente que por vezes lhes pode ser muito hostil. Também para ir removendo as espécies infestantes que ao tomar conta do terreno vão inibindo a capacidade de estas pequenas plantas se desenvolverem. Ou seja, contribuir para o restabelecimento de algum do equilíbrio perdido.

Para aos poucos se irem criando núcleos de vegetação autóctone que vão dando protecção às novas plantas que vão crescendo à sua volta, e que servem também de centros de difusão de sementes, levadas pelo vento ou no aparelho digestivo das aves.


— Vantagens de acompanhar e cuidar
uma planta após a sua plantação —
Também fui ouvindo as vozes da discórdia e da descrença. Alguns achavam que a AAPEF até fazia um trabalho simpático mas de impacto insignificante. Percebi que tinham uma coisa em comum comigo, quando eu subia ao Pico do Areeiro: faziam a sua apreciação sem tirar o traseiro do carro. Outros percebi que opinam sem sequer lá irem, a partir do conforto dos gabinetes climatizados ou do sofá lá de casa.

Por exemplo, ainda me lembro de quando decidimos tentar reintroduzir cedros-da-Madeira numa zona que é vizinha de uma elevação que se chama “Pico do Cedro”. Apesar do nome, naquela altura não havia vista que permitisse vislumbrar um cedro sequer. No entanto escavações tinham revelado naquele local a existência de múltiplas raízes da espécie. Alguns sábios da cidade afirmaram que era trabalho inútil porque ali, naquelas condições, não haveria cedro-da-Madeira que resistisse. Quando muito estariam condenados a sobreviver enfezados, não ultrapassando os 25 cm. de altura.

Infelizmente parece que tinham razão. Plantámos os primeiros e não resistiram muito tempo. Mas ali não se planta só por plantar. Ali cuida-se, observa-se, regista-se, compara-se, trocam-se ideias. E notámos que o insucesso parecia dever-se ao vento intenso, que ao fustigar a pequena árvore ia abrindo um sulco à volta da raiz, expondo-a a um excesso de oxigénio. Pensámos que se era esse o problema então se conseguíssemos fixar os cedros, evitando o movimento basculante, melhoraríamos as chances de as plantas se desenvolverem.

Mesmo ali ao lado tínhamos material suficiente para fazer varas a partir dos eucaliptos que tínhamos removido. Enterradas junto às plantas, reforçando a ligação com simples cordel de sisal, percebemos que como tutores cumpriam muito bem o seu papel e de repente a desilusão foi substituída pela alegria de ver cedros-da-Madeira a crescer devagar mas persistentemente, como podem comprovar alguns exemplares plantados na área do Pico do Areeiro, cuja altura já ultrapassa os 2,5 m. acima do solo.

Outra situação de que nos apercebemos é de que há bolsas de terreno onde parece impossível alguma coisa crescer. Plantamos alguns pés de diferentes espécies mas nada parece pegar.

Por exemplo, a zona mais elevada do Campo de Educação Ambiental do Cabeço da Lenha, uma área relativamente plana e por isso exposta à intensidade dos ventos de todos os quadrantes, à sombra inexistente, à dificuldade de reter a humidade no solo.

Em casos como este aprendemos a esperar que as 3 espécies de urze — Urze-molar (Erica arborea), Urze-das-vassouras (Erica platycodon subsp. maderincola), Urze-rasteira (Erica maderensis) — se autoregenerem a partir das sementes que ficaram no solo e outras que já são trazidas pelos ventos ou espalhadas pelos voluntários.

As urzes estão muito bem adaptadas ao ecossistema de altitude e resistem muito bem aos elementos. Aos poucos o círculo vai-se apertando e quando elas atingem um porte significativo então vamos plantando junto a elas plantas de outras espécies, que assim beneficiam da sua protecção de ventos dominantes, recebem rega da humidade retida pelas urzes — mesmo quando não chove, o simples contacto entre as nuvens e a folhagem forma gotas de água que aos poucos vão escorrendo para o solo — e, quando está muito quente, também proporcionam alguma sombra.

Assim, onde nada parecia crescer, com paciência e cuidado se vai restabelecendo a formação vegetal.


— Tudo estava bem até que… —
E assim se passaram quase 5 anos, vendo o coberto vegetal das áreas onde trabalhamos a espalhar-se, a diversificar-se. Apenas com plantas nativas da nossa ilha.

Até que veio 2010, um ano aziago para os madeirenses em algumas datas marcantes. Primeiro foi o 20 de Fevereiro, que trouxe a destruição à cidade e pôs muita a gente a pensar na origem destes males.

Alguns perceberam que era lá em cima que se tinha de trabalhar (ou, no nosso caso, continuar a trabalhar) para reduzir os riscos, aumentando a segurança. Repondo o coberto vegetal, consolidando os solos, aumentando a infiltração da água no solo. Eram precisas mais árvores, arbustos, herbáceas, para fixar o solo, para reter a água ou, em caso de eventos torrenciais como o desse dia, pelo menos para a desacelerar. E também para fixar o material solto que nessas alturas rola encosta abaixo.

A quem não percebe a importância das árvores dou um exemplo que é fácil de verificar sem sair da cidade, sem pôr os pés na lama: quando chove, se caminharmos ao longo de uma rua com árvores reparamos que a precipitação é mais intensa onde não há árvores — enquanto debaixo delas caem quando muito umas pingas, mais ou menos grossas, mas menos frequentes. Quando pára de chover, as pingas continuam debaixo das árvores, por mais umas horas, apesar de a precipitação ter parado.

E é neste processo de desaceleração da chegada da chuva ao solo que as plantas desempenham um papel fundamental no aumento da infiltração da água no solo, enriquecendo os aquíferos no subsolo, e na diminuição dos fluxos torrenciais das águas pelas encostas abaixo, trazendo toneladas de material rochoso e lenhoso solto, além de muita lama. As plantas têm mais um papel deveras relevante ao fixar no solo ou bloqueando o movimento encosta abaixo desse material.

E também garantem a vida nesta ilha, ao reterem na sua folhagem a humidade trazida pelos ventos nas nuvens, mesmo quando não chove, pela magia do simples contacto entre água e planta, que assim desce lentamente em direcção ao solo para alimentar as plantas e os aquíferos subterrâneos de onde brota a água que chega às nossas casas.

Quem não entendeu ou não quis entender princípios tão simples, achou melhor afundar em betão mais uns milhões dos cofres do Estado (e quem é o Estado afinal?).

Mas, quase 6 meses passados deste evento, a 13 de Agosto de 2010, inicia-se um incêndio que durante duas semanas devastará a maior parte do maciço montanhoso central. Quase 9 anos de trabalho nas áreas de plantação e 14 de autoregenaração das plantas, finalmente livres da predação dos dentes dos animais quando foram dali retirados, foram literalmente com o fogo.


— Renascer das cinzas —
Reinava um silêncio sepulcral e um intenso cheiro a queimado, num cenário despido de cor, invadido pelo negro do carvão e pelo cinzento de algumas plumas de fumo de vegetação que ainda ardia ao longe, quando lá voltámos uma semana depois para, com vontade redobrada iniciar nova fase do projecto — Renascer das Cinzas.

Dezenas de voluntários entregaram-se semana após semana ao duro trabalho de cortar o material calcinado, preparando o terreno para as novas plantas que em breve voltaríamos a colocar na terra. Tínhamos mais um problema: com uma área tão extensa afectada pelo incêndio dificilmente os viveiros das autoridades florestais poderiam continuar o fornecimento das plantas que necessitávamos. Mas aí o engenho, o coração e a generosidade de alguns apresentaram uma solução e colocaram de pé um novo viveiro no Funchal, que nos anos seguintes supriu as necessidades das duas áreas de plantação, associado ao contributo individual de cidadãos de foram fazendo as suas pequenas produções em casa, a partir de semente ou de estacaria.

Estávamos no bom caminho. Em Março de 2011 a neve desceu até perto dos 1400 metros de altitude, cobrindo todas as jovens plantas que havíamos plantado um par de semanas antes. Cá em baixo na cidade, vendo os cumes pintados de branco, receámos pelo futuro delas. Mas chegados lá verificámos que afinal, tirando umas folhas queimadas pelo frio, elas tinham resistido bem ao embate. A estilha que tínhamos colocado nas caldeiras tinha cumprido muito bem o seu papel.

Um par de semanas depois, enquanto carregávamos o material queimado para triturar na estilhadora, ouvimos o primeiro piar desde há uns meses. Descobrimos um ninho de melro-preto no meio do negrume dos ramos queimados. Mais um sinal de esperança nos bicos ruidosos das crias que esperavam pela mãe. A vida voltava lenta mas firmemente às zonas afectadas lá de cima.

Na altura houve quem me perguntasse “para quê recomeçar?”. Afinal, poderia arder tudo de novo. Nas notícias li que não era preciso, porque a própria natureza trataria da sua própria recuperação após 2 ou 3 anos. De quê? De inacção, parece.

Hoje a natureza responde visivelmente na comparação entre as áreas onde trabalhamos e os terrenos vizinhos, onde nada se fez nestes quase 8 anos. Olha-se e continua a ver-se as silhuetas dos esqueletos das plantas queimadas em 2010. Vêem-se as infestantes a invadir os terrenos circundantes, onde nada mais parece conseguir vingar. Contrastando com o verde de inúmeras tonalidades que dezenas de espécies de plantas endémicas e indígenas espalham pelos terrenos das nossas áreas de plantação, fazendo a vida regressar onde até há pouco apenas existia um deserto de montanha.


— Conclusão —
Neste texto — e nas fotos que aqui partilho — expus algumas vitórias que grupos de apenas 30 a 40 cidadãos voluntários munidos de vontade, generosidade e algum saber, têm conseguido em apenas um ou dois dias por mês. Dou por mim a imaginar o que já poderia ter sido feito se mais cidadãos, se as entidades responsáveis pelo presente e pelo futuro da ilha e dos seus habitantes, desenvolvessem trabalho semelhante em mais áreas da alta montanha da ilha.

O que poderia já estar feito se tivéssemos equipas profissionais a trabalhar lá em cima toda a semana num projecto de reflorestação sério, consistente, orientado pelo respeito pelas lições que a natureza nos tem dado? Mais, muito mais, certamente.

Como seria, se em vez de termos políticos preocupados com o que podem fazer em 4 anos para ganhar os votos que lhes garantem a sua subsistência no poder (ou para lá chegar) e que acabam por tomar não as medidas que são melhores para a Região e os seus habitantes mas, quando muito, apenas aquelas que podem concretizar em tempo útil?

Como seria se aparecesse uma nova geração de políticos mais preocupados com o futuro dos seus concidadãos, que não se importem de esperar 20, 30 anos, para que se resolvam de vez problemas que perduram há séculos?

Como seria se em vez de se fomentarem políticas apenas por trazerem fundos europeus, se considerassem também medidas sensatas, sustentáveis, mesmo que tivessem de ser realizadas apenas com o esforço dos madeirenses, afinal, quem mais depende destas decisões?

Por isso, quanto à introdução do gado lá em cima com a justificação dos benefícios dúbios que poderão ter no processo, eu faço uma pergunta: para quê?

Os malefícios são bem conhecidos. Temos séculos de registos. E muita gente que ainda guarda na memória o impacto destes animais na paisagem de montanha madeirense.

Os benefícios, se existem, além de desnecessários — se alguma coisa o trabalho da Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal tem provado é que a vegetação autóctone recupera muito bem se as espécies invasoras forem controladas, que aqueles solos afinal não são infertéis e suportam muito bem as suas habitantes vegetais — parecem-me irrisórios quando comparados com os estragos que os dentes apreciadores de plantas tenrinhas podem provocar lá em cima — são as urzes (cuja importância no sucesso deste projecto já foi bastas vezes demonstrada) e outras plantas que elas comem primeiro, não a carqueja, a giesta, o eucalipto ou a acácia…

Nada me move contra as ovelhas e as cabrinhas. Também acredito que podem fazer parte da solução em vez de continuarem a ser um factor importante do problema.

Por isso, em vez da proposta de modelos completamente alheios às condições específicas e à problemática das nossas zonas altas que tem sido feito por defensores do regresso do gado lá acima, prefiro usar como guia o que já se faz em regiões com características semelhantes.

Por exemplo, nos Alpes. Ali os incêndios também são um problema. Nas minhas viagens encontrei algumas das maiores instalações de bombeiros que já pude ver. E escolas de bombeiros de grande dimensão. Deve querer dizer alguma coisa.

Mas o que pude ver é que as pastagens são colocadas não no alto da montanha mas num anel com algumas centenas de metros à volta das povoações. Onde pastam serenamente as vaquinhas da Milka e outro gado mais pequeno. Se vier um incêndio da floresta, além deste anel servir de protecção às habitações da periferia, permite a melhor colocação das forças de combate ao incêndio em segurança. E é assim que fazem há séculos.

E é isto que temos preconizado para a nossa ilha. Em Agosto de 2010 enquanto a serra ardeu durante duas semanas pouca gente se preocupava com o facto e as imagens não abriam os telejornais dos canais continentais nem as redes sociais competiam pelos “likes” para a imagem mais dramática. Foi apenas quando as chamas se chegaram às habitações das zonas altas da cidade (e até mesmo do centro), preenchendo as imagens com um cenário dantesco, que as pessoas gritaram por socorro e a mesma comunicação social que tinha ficado em silêncio pela montanha, inundou o mundo com imagens que ficarão certamente na nossa memória por muito tempo.

Por isso é ali, junto às habitações, a altitudes entre os 600 e os 900 metros, onde actualmente crescem descontroladamente eucaliptos e acácias, carqueja e giesta, que preconizamos a sua remoção, criando pastagens que sirvam de zonas de protecção das populações. Que permitam uma exploração económica credível da criação desse gado, com a produção de leite e seus derivados, e com o acompanhamento veterinário que garanta as boas condições sanitárias dos animais.

Não é rasgando mais a montanha para criar acessos a novas pastagens que se vai resolver o problema. Bem pelo contrário. Quanto mais se mexe no solo mais vectores de erosão se vão criando. Mais material destrutivo que ficará pronto para descer à cidade na primeira aluvião.

Por isso acabe-se de uma vez com alguns mitos que está na moda tentar transformar em verdades à força da sua repetição:
  • Cabras não são bombeiras. E erva rapada não é floresta. É deserto.

  • A vegetação autóctone cresce muito bem nos solos de montanha. Não precisa de caganitas como suplemento. Menos ainda de bocas esfomeadas e patas que esmagam tudo à passagem.

Termino com uma pergunta: quem acha tanta graça às cabrinhas a decorar as bermas da estrada ou que é uma “tradição” que interessa preservar, também achou graça à devastação do 20 de Fevereiro? Ou que os “20 de Fevereiro” são uma tradição que deve ser preservada?


— Sugestões de visita—

Algumas fotos evidenciam a presença de infestantes como a giesta e a carqueja. A maioria já arrancada e seca. Continuaremos este trabalho enquanto for necessário. Não prometemos ser breves, mas seremos persistentes, certamente.

Virgílio Silva
Vice-presidente
Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal

1 Comentário(s):

Blogger flycka escreveu...

muito bom

30 junho, 2018 18:31  

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